sexta-feira, 29 de março de 2019

Maria do Alívio




Um casal britânico quis saber quem era a jovem numa foto de 1956. Acabou a fazer um filme sobre a Póvoa de Varzim 
Maria do Alívio tinha 16 anos quando foi apanhada pela lente de Agnès Varda a passar sob uma imagem de Sophia Loren. Um casal britânico quis saber a sua história e acabou a realizar um filme sobre a dicotomia entre pescadores e turistas.
Quando visitaram pela primeira vez a Póvoa de Varzim, em 1996, Steve Harrison e Morag Brennan estariam longe de imaginar que a cidade se tornaria (afinal) um ponto de passagem recorrente durante os próximos anos. De “turistas curiosos”, o casal do Reino Unido – ele, inglês e ela escocesa – que na década de 90 queria apenas “fugir ao caos mediático da morte da princesa Diana”, encontrou razões suficientes para regressar. Uma delas foi o filme documental Um Conto de Duas Cidades.

 “Não sei se foi o ar ou a atmosfera, mas desde que nós chegámos, tornou-se um lugar especial para nós. Parecia que podíamos finalmente respirar. Apaixonamo-nos, não foi?”, diz Morag Brennan, enquanto olha para o marido, Steve Harrison. O conforto que encontravam na cidade e o gosto pela História – o realizador tem formação nesta área – foram a combinação perfeita para o que haveria de acontecer, anos mais tarde.

Em 2010, o casal viu um postal em Lisboa que achou curioso: uma fotografia a preto e branco de uma mulher com vestes negras que andava descalça numa rua. No muro atrás dela estava fixado um cartaz meio rasgado de Sophia Loren, conhecida actriz italiana da década de 50 e, ao lado, uma tabuleta de madeira com a palavra “Vende-se”. Num ápice, descobriram que a autora da fotografia era Agnès Varda, cineasta belga que ambos admiram, e que o cenário era a Rua das Lavadeiras, na Póvoa de Varzim, em 1956.
Ora uma descoberta destas não podia ficar por ali. Quando voltaram ao Norte de Portugal, procuraram saber quem era aquela jovem que não usava sapatos, que tinha as pernas à mostra, que carregava o preto no corpo e com o cabelo amarrado no cimo da nuca, o chamado puxo — tão comum nas mulheres da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim. Maria do Alívio era o seu nome e na fotografia tinha 16 anos. “No próprio dia em que pedimos ajuda no posto de turismo da Póvoa, o José de Azevedo [historiador local] levou-nos a uma visita guiada pelo Bairro Sul [um dos bairros tradicionais da cidade] e contou-nos quem era aquela mulher e como tinha morrido”, explica Steve Harrison.
À medida que foram conhecendo os pormenores da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim, especialmente o seu passado, o casal pensou em documentar todas as informações num artigo científico. No entanto, havia muito mais do que aquele grupo de pescadores e as suas famílias. “Apercebemo-nos do que a Agnès Varda estava a tentar dizer naquela fotografia: a Maria do Alívio representava a comunidade piscatória e a Sophia Loren representava a parte turística da cidade”, refere o realizador.

Mais habituados a frequentar a zona turística da Póvoa, onde a praia e a época balnear são os cartões-de-visita, os dois realizadores só verificaram a “divisão” após conversarem com os pescadores. “Começamos a ver e a ouvir o modo como falavam da 'cidade turística', como se fosse algo muito separado deles”, diz Steve. “A partir desse momento, nós vimos a fotografia diante dos nossos olhos: a comunidade piscatória vestia-se e comportava-se de forma diferente”, acrescenta Morag.
Embora ambos acreditem que as diferenças sejam cada vez menores nos dois lados opostos da cidade, algo é impossível de negar: nas décadas de 50 e 60, a Póvoa de Varzim era o conjunto de dois lugares, diferentes entre si, mas sob alçada do mesmo território e da mesma autoridade. Daí a importância de fazer um filme: “Fomos incentivados pelas pessoas da cidade. Mas também vimos uma geração inteira a morrer. As pessoas mais idosas, que estavam todos os dias sentadas nos mesmos lugares em Aver-o-Mar [freguesia da Póvoa de Varzim], já não estão lá. Perdemo-las. Tínhamos de contar as suas histórias”, salienta o realizador.
“Não tirei o negro do meu corpo e hei-de continuar até à cova”
Conhecer os dois lados de uma mesma cidade implicava ouvir as vozes tanto da comunidade piscatória como da parte turística da Póvoa de Varzim. Estando os dois lugares conotados com zona sul e a zona norte da cidade, cuja “divisão” e rivalidade atinge o auge com a Festa de São Pedro no final de Junho – o Bairro Sul e o Bairro Norte –, o tempo dedicado no filme a cada um é também preciso. “Demos 45 minutos a ambos. O que pretendemos foi conhecer em grande detalhe as peculiaridades da cultura da comunidade piscatória e depois marcar as diferenças com a 'cidade moderna'”, esclarece Steve. “Não tínhamos nenhuma agenda, só queríamos entender como era a Póvoa em 1956”, confirma Morag.

Uma das formas de conhecer a cidade na década de 50 e sobretudo reviver o que teria sido a vida de Maria do Alívio — a rapariga de 16 anos da fotografia de Agnès Varda —, era falar com mulheres de pescadores. Da vida dura de trabalho na venda do peixe aos horários desgastantes nas fábricas, a figura feminina comandava a família enquanto o marido estava no mar.

“Por essa razão, focámo-nos nas mulheres, porque era pouco natural isto acontecer naquele tempo”, reforça o realizador. Contrariamente ao papel de subserviência que geralmente teria perante o homem e consonantes com “regras” conservadoras do Estado Novo, a mulher na comunidade piscatória era forte, independente e dona de si mesma.

Nas entrevistas do filme às quatro mulheres de pescadores, a fragilidade também se faz sentir, especialmente quando um ente querido morre no mar. “Não tirei o negro do meu corpo e hei-de continuar até à cova”, diz uma delas, após cerca de 20 anos de luto pelo filho.

De um Sul pescador para um Norte empreendedor, a vida na Póvoa de Varzim fazia-se de subsistência e também de muito esforço para levar avante os negócios de família. Dos cafés e das mercearias aos quartos alugados aos veraneantes, a cidade era apetecível para os habitantes e para os de fora, económica e politicamente. “Não se pode fazer um filme em Portugal sobre as décadas de 50 e 60 sem falar do autoritarismo a que Portugal estava sujeito”, admite Steve Harrison.
A Póvoa de Varzim não passava despercebida dos olhares da ditadura. Um Conto de Duas Cidades mostra como a “cidade à beira-mar” era um importante indicador dos ventos de mudança ou de autoritarismo, que importavam travar ou manter, respetivamente. Da esposa do general Franco, de Espanha — Carmen Polo —, que fazia compras na Ourivesaria Gomes, numa das mais conhecidas ruas comerciais da Póvoa de Varzim, até à campanha presidencial de 1958 do general Humberto Delgado na cidade, que deixou a esperança de uma democracia precoce – mas que só se viria a concretizar em 1974 e já sem o “General Sem Medo”.

Para Steve Harrison, Salazar queria agradar aos pescadores e não gostava da vertente empreendedora que a Póvoa de Varzim começava a ganhar na zona turística durante a época balnear. A independência económica e financeira significava a insubmissão do pensamento e o começo dos questionamentos acerca do estado do país.
A cidade poderia não estar muito politizada na comunidade piscatória, mas todos sabiam do que o Estado Novo era capaz. “Era resiliência e não resistência. As pessoas viviam e lidavam com a ditadura. Tiveram um compromisso consigo mesmas e com o regime. Eu não as culpo ou censuro”, afirma. Se uns guardavam os pensamentos para si, outros davam voz a eles. Alguns poveiros seguiram de perto Humberto Delgado e sofreram as maleitas desse apoio: foram denunciados por informadores e perseguidos pela polícia política.

“A Póvoa de Varzim seria a primeira cidade que ele visitaria após ser eleito como Presidente da República. Ele próprio disse isso no seu discurso”, explica Steve Harrison. “Como historiador, só posso concluir que a vinda de Humberto Delgado à cidade foi um momento histórico muito importante”, acrescenta. Como é descrito no filme, Humberto Delgado teria maioria absoluta na Póvoa de Varzim e nos concelhos limítrofes, caso não fossem as várias mesas de voto forjadas nessas eleições a favor do candidato do regime, Américo Tomás.

E Agnès Varda sabia o poder da fotografia que tinha em mãos? “Estou convencida de que sabia. Ela tem uma cápsula onde guarda as peças mais importantes da sua vida e a fotografia da Maria do Alívio é uma delas”, afirma Morag Brennan. “Eu adorava conhecer as outras fotografias que ela tirou na Póvoa. É essa a minha ambição: descobrir esse rolo fotográfico”, conclui Steve Harrison, entre risos.

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