Um casal britânico quis saber quem era a jovem numa
foto de 1956. Acabou a fazer um filme sobre a Póvoa de Varzim
Maria do Alívio tinha
16 anos quando foi apanhada pela lente de Agnès Varda a passar sob uma imagem
de Sophia Loren. Um casal britânico quis saber a sua história e acabou a
realizar um filme sobre a dicotomia entre pescadores e turistas.
Quando visitaram pela
primeira vez a Póvoa de Varzim, em 1996, Steve Harrison e Morag Brennan
estariam longe de imaginar que a cidade se tornaria (afinal) um ponto de
passagem recorrente durante os próximos anos. De “turistas curiosos”, o casal
do Reino Unido – ele, inglês e ela escocesa – que na década de 90 queria apenas
“fugir ao caos mediático da morte da princesa Diana”, encontrou razões
suficientes para regressar. Uma delas foi o filme documental Um Conto de
Duas Cidades.
“Não sei se foi o ar ou a atmosfera, mas desde
que nós chegámos, tornou-se um lugar especial para nós. Parecia que podíamos
finalmente respirar. Apaixonamo-nos, não foi?”, diz Morag Brennan, enquanto
olha para o marido, Steve Harrison. O conforto que encontravam na cidade e o
gosto pela História – o realizador tem formação nesta área – foram a combinação
perfeita para o que haveria de acontecer, anos mais tarde.
Em 2010, o casal viu um postal em Lisboa que achou curioso: uma fotografia a preto e branco de uma mulher com vestes negras que andava descalça numa rua. No muro atrás dela estava fixado um cartaz meio rasgado de Sophia Loren, conhecida actriz italiana da década de 50 e, ao lado, uma tabuleta de madeira com a palavra “Vende-se”. Num ápice, descobriram que a autora da fotografia era Agnès Varda, cineasta belga que ambos admiram, e que o cenário era a Rua das Lavadeiras, na Póvoa de Varzim, em 1956.
Ora uma descoberta
destas não podia ficar por ali. Quando voltaram ao Norte de Portugal,
procuraram saber quem era aquela jovem que não usava sapatos, que tinha as
pernas à mostra, que carregava o preto no corpo e com o cabelo amarrado no cimo
da nuca, o chamado puxo — tão comum nas mulheres da comunidade piscatória da
Póvoa de Varzim. Maria do Alívio era o seu nome e na fotografia tinha 16 anos.
“No próprio dia em que pedimos ajuda no posto de turismo da Póvoa, o José de
Azevedo [historiador local] levou-nos a uma visita guiada pelo Bairro Sul [um
dos bairros tradicionais da cidade] e contou-nos quem era aquela mulher e como
tinha morrido”, explica Steve Harrison.
À medida que foram
conhecendo os pormenores da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim,
especialmente o seu passado, o casal pensou em documentar todas as informações
num artigo científico. No entanto, havia muito mais do que aquele grupo de
pescadores e as suas famílias. “Apercebemo-nos do que a Agnès Varda estava a
tentar dizer naquela fotografia: a Maria do Alívio representava a comunidade
piscatória e a Sophia Loren representava a parte turística da cidade”, refere o
realizador.
Mais habituados a frequentar a zona turística da Póvoa, onde a praia e
a época balnear são os cartões-de-visita, os dois realizadores só verificaram a
“divisão” após conversarem com os pescadores. “Começamos a ver e a ouvir o modo
como falavam da 'cidade turística', como se fosse algo muito separado deles”,
diz Steve. “A partir desse momento, nós vimos a fotografia diante dos nossos
olhos: a comunidade piscatória vestia-se e comportava-se de forma diferente”,
acrescenta Morag.
Embora ambos
acreditem que as diferenças sejam cada vez menores nos dois lados opostos da
cidade, algo é impossível de negar: nas décadas de 50 e 60, a Póvoa de Varzim
era o conjunto de dois lugares, diferentes entre si, mas sob alçada do mesmo
território e da mesma autoridade. Daí a importância de fazer um filme: “Fomos
incentivados pelas pessoas da cidade. Mas também vimos uma geração inteira a
morrer. As pessoas mais idosas, que estavam todos os dias sentadas nos mesmos
lugares em Aver-o-Mar [freguesia da Póvoa de Varzim], já não estão lá.
Perdemo-las. Tínhamos de contar as suas histórias”, salienta o realizador.
“Não tirei o negro do meu corpo e hei-de continuar até à cova”
Conhecer os dois
lados de uma mesma cidade implicava ouvir as vozes tanto da comunidade
piscatória como da parte turística da Póvoa de Varzim. Estando os dois lugares
conotados com zona sul e a zona norte da cidade, cuja “divisão” e rivalidade
atinge o auge com a Festa de São Pedro no final de Junho – o Bairro Sul e o
Bairro Norte –, o tempo dedicado no filme a cada um é também preciso. “Demos 45
minutos a ambos. O que pretendemos foi conhecer em grande detalhe as
peculiaridades da cultura da comunidade piscatória e depois marcar as
diferenças com a 'cidade moderna'”, esclarece Steve. “Não tínhamos nenhuma
agenda, só queríamos entender como era a Póvoa em 1956”, confirma Morag.
Uma das formas de
conhecer a cidade na década de 50 e sobretudo reviver o que teria sido a vida
de Maria do Alívio — a rapariga de 16 anos da fotografia de Agnès Varda —, era
falar com mulheres de pescadores. Da vida dura de trabalho na venda do peixe
aos horários desgastantes nas fábricas, a figura feminina comandava a família
enquanto o marido estava no mar.
“Por essa razão,
focámo-nos nas mulheres, porque era pouco natural isto acontecer naquele
tempo”, reforça o realizador. Contrariamente ao papel de subserviência que
geralmente teria perante o homem e consonantes com “regras” conservadoras do
Estado Novo, a mulher na comunidade piscatória era forte, independente e dona
de si mesma.
Nas entrevistas do
filme às quatro mulheres de pescadores, a fragilidade também se faz sentir,
especialmente quando um ente querido morre no mar. “Não tirei o negro do meu
corpo e hei-de continuar até à cova”, diz uma delas, após cerca de 20 anos de
luto pelo filho.
De um Sul pescador para um Norte empreendedor, a vida na Póvoa de Varzim fazia-se de subsistência e também de muito esforço para levar avante os negócios de família. Dos cafés e das mercearias aos quartos alugados aos veraneantes, a cidade era apetecível para os habitantes e para os de fora, económica e politicamente. “Não se pode fazer um filme em Portugal sobre as décadas de 50 e 60 sem falar do autoritarismo a que Portugal estava sujeito”, admite Steve Harrison.
De um Sul pescador para um Norte empreendedor, a vida na Póvoa de Varzim fazia-se de subsistência e também de muito esforço para levar avante os negócios de família. Dos cafés e das mercearias aos quartos alugados aos veraneantes, a cidade era apetecível para os habitantes e para os de fora, económica e politicamente. “Não se pode fazer um filme em Portugal sobre as décadas de 50 e 60 sem falar do autoritarismo a que Portugal estava sujeito”, admite Steve Harrison.
A Póvoa de Varzim não
passava despercebida dos olhares da ditadura. Um Conto de Duas Cidades
mostra como a “cidade à beira-mar” era um importante indicador dos ventos de
mudança ou de autoritarismo, que importavam travar ou manter, respetivamente.
Da esposa do general Franco, de Espanha — Carmen Polo —, que fazia compras na
Ourivesaria Gomes, numa das mais conhecidas ruas comerciais da Póvoa de Varzim,
até à campanha presidencial de 1958 do general Humberto Delgado na cidade, que
deixou a esperança de uma democracia precoce – mas que só se viria a
concretizar em 1974 e já sem o “General Sem Medo”.
Para Steve Harrison, Salazar queria agradar aos pescadores e não gostava da vertente empreendedora que a Póvoa de Varzim começava a ganhar na zona turística durante a época balnear. A independência económica e financeira significava a insubmissão do pensamento e o começo dos questionamentos acerca do estado do país.
A cidade poderia não
estar muito politizada na comunidade piscatória, mas todos sabiam do que o
Estado Novo era capaz. “Era resiliência e não resistência. As pessoas viviam e
lidavam com a ditadura. Tiveram um compromisso consigo mesmas e com o regime.
Eu não as culpo ou censuro”, afirma. Se uns guardavam os pensamentos para si,
outros davam voz a eles. Alguns poveiros seguiram de perto Humberto Delgado e
sofreram as maleitas desse apoio: foram denunciados por informadores e
perseguidos pela polícia política.
“A Póvoa de Varzim
seria a primeira cidade que ele visitaria após ser eleito como Presidente da
República. Ele próprio disse isso no seu discurso”, explica Steve Harrison.
“Como historiador, só posso concluir que a vinda de Humberto Delgado à cidade
foi um momento histórico muito importante”, acrescenta. Como é descrito no
filme, Humberto Delgado teria maioria absoluta na Póvoa de Varzim e nos
concelhos limítrofes, caso não fossem as várias mesas de voto forjadas nessas
eleições a favor do candidato do regime, Américo Tomás.
E Agnès Varda sabia o
poder da fotografia que tinha em mãos? “Estou convencida de que sabia. Ela tem
uma cápsula onde guarda as peças mais importantes da sua vida e a fotografia da
Maria do Alívio é uma delas”, afirma Morag Brennan. “Eu adorava conhecer as
outras fotografias que ela tirou na Póvoa. É essa a minha ambição: descobrir
esse rolo fotográfico”, conclui Steve Harrison, entre risos.
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